25/04/2019
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Prato Cheio
Peras em formato de coração, cenouras com braços, chuchus siameses. Na feira do bairro ou no supermercado, será que você colocaria esses alimentos no seu carrinho? Para milhões de pessoas em todo o mundo a resposta é não. Por quê? Um dos fatores responsáveis pela rejeição diária de toneladas de frutas, legumes e até mesmo de hortaliças é o fato de elas não preencherem um padrão “de beleza”. Dessa forma, na engrenagem que move uma cadeia global de produção de alimentos, um terço das colheitas é perdido, enquanto 821 milhões de pessoas em todo o mundo vivem em estado de insegurança alimentar, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Num quadro em que não falta comida, como mudar essa realidade na qual o desperdício convive com a fome?
Para a coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (UnB), Elizabetta Recine, também professora do Departamento de Nutrição da mesma instituição, é necessário levar em consideração que esse problema não se restringe à etapa do consumo final. “Podemos dizer que a questão do desperdício de alimentos é uma questão estrutural de todo o sistema alimentar, que vai desde o processo de produção, colheita, transporte, armazenamento e comercialização até chegar ao consumo”, explica.
Somente quando o alimento está ao alcance de olhos e mãos do consumidor é que se pode analisar o que move sua escolha. Por trás disso, propagandas ainda apontam o que deve ou não ser levado à mesa, de acordo com a aparência. “Quanto mais nos livrarmos desses padrões que determinam a qualidade, menor desperdício teremos na etapa do consumo”, destaca a especialista, que participa de diversas redes e coletivos de organizações nacionais e internacionais da área, como a Associação Mundial de Nutrição em Saúde Pública.
Foto: Leila Fugii.
Ação e reação
Entre algumas ações voltadas para o fim do desperdício de alimentos estão estruturas físicas e logísticas capazes de captar, receber e distribuir gratuitamente doações feitas pelos setores privado e público. Ingredientes essenciais para complementar a despensa de instituições sociais. Um exemplo que atende a essa proposta é o programa Mesa Brasil (leia o boxe Alimente esta ideia).
No Sesc Osasco, uma das 18 unidades onde o programa foi implantado, o trabalho de captação e de distribuição de alimentos começa às oito horas da manhã. Três caminhões, com dois integrantes cada um, realizam um itinerário que passa, em média, por sete empresas doadoras de alimentos para à tarde ser feita a entrega às instituições sociais cadastradas.
A nutricionista Carla Maran é quem coordena essa equipe, com bom humor e café da manhã reforçado para uma longa jornada (acompanhe o passo a passo desse itinerário nas imagens do boxe Hora a hora à mesa…). O roteiro chega até regiões mais afastadas, como o município de Cotia. “Dessa forma, pelo menos uma vez por semana, passamos por todas essas instituições. Isso equivale ao atendimento de 16.210 pessoas semanalmente, entre jovens, idosos e, principalmente, crianças”, detalha.
São frutas, legumes e verduras, mas também arroz, feijão, laticínios e outros itens que, muitas vezes, segundo Carla, nunca foram provados por quem é atendido pelo programa. “Teve criança que nunca tinha visto uma maçã, algo inacreditável. Da mesma forma, pessoas mais velhas experimentaram, pela primeira vez, um iogurte”, conta.
Bem antes desses alimentos serem remanejados e colocados no caminhão, cuja capacidade de armazenamento é de 1,2 tonelada, é feita uma triagem pela equipe do veículo sobre o que realmente está próprio para consumo. Todos os envolvidos são treinados para fazer esta seleção dos alimentos. “Quando checamos, devemos nos perguntar: eu comeria essa fruta? Também checamos prazo de validade, temperatura e outros pontos para levar apenas o que tem qualidade”, explica o motorista Gilberto Duarte Amorim.
Da mesma forma, o repositor de frios Josenilson Barbosa Rodrigues, do Atacadão Osasco, toma cuidado de checar item por item do que será doado. Para entender a importância dessa rede de combate ao desperdício de alimentos, ele participou de uma atividade de sensibilização organizada pelo Mesa Brasil no Sesc Osasco. “Sou o responsável por toda a triagem do setor de frios e tudo que separo tem que estar dentro do padrão. De um lado ajudamos pessoas a não passarem fome e, do outro, a empresa deixa de ter gastos com tambores de lixo”, constata.
Foto: Leila Fugii.
Até o caroço
Cursos e oficinas realizados pelo Mesa Brasil ensinam as formas corretas de armazenamento higiene e aproveitamento de todo o alimento doado. E tudo isso é reforçado no momento da entrega. Afinal de contas, “se eu tenho pouca habilidade e criatividade de olhar determinados alimentos e transformá-los em comida, a tendência é que eu também perca os alimentos que estão na minha geladeira e na minha despensa”, pondera a especialista Elizabetta Recine.
Por isso, há uma preocupação sobre o que vai parar no prato do café da manhã, almoço, lanche e jantar (leia boxe Tá servido?). “Muita gente não sabe o que fazer com alguns alimentos a não ser a mesma receita. Por isso, mostramos que há um valor nutricional e que também são saborosas outras partes de legumes e frutas que seriam desprezadas”, acrescenta Carla Maran. “Tanto que hoje, recebemos fotos das cozinheiras mostrando o prato que fizeram depois de aprenderem que dava para fazer um bolo com casca de banana.”
Por fim, os alimentos que não passaram pela triagem ganham outro destino. Frutas, legumes e verduras doados em grande quantidade são enviados ao Cecam – Centro de Captação e Armazenagem, e aqueles que já passaram do ponto vão para a organização não governamental Santuário dos Bichos, em Atibaia (SP). Alimentos que ainda podem ser consumidos por cachorros, patos, porcos e outros 400 animais de 15 espécies diferentes retirados de situação de maus-tratos e abrigados pela ONG. “Uma forma sustentável de fechar essa cadeia de ponta a ponta”, arremata Karen Leal da Silva, assistente da Gerência de Alimentação e Segurança Alimentar, responsável pelo Cecam.
Foto: Leila Fugii.
Hora a hora à mesa…
Das 9h ao meio-dia
Coleta de alimentos em duas empresas parceiras
Durante a parte da manhã, o caminhão Mesa Brasil sai do Sesc Osasco e coleta doações na Brasnica Frutas Tropicais e no Atacadão Osasco: são frutas, legumes, verduras, laticínios e embutidos.
Em cada local onde é recolhida a doação também é feita, na hora, a triagem: somente aquilo que estiver próprio para consumo será transportado.
De meio-dia às 14h30
Entrega dos produtos em duas instituições sociais
Na parte da tarde, é feita a entrega dos alimentos às instituições sociais Cristo Rei (80 crianças – de seis a 11 anos) e Assistência Vicentina Imaculada Conceição (50 idosos – de 60 a 100 anos): cada instituição recebe uma quantidade calculada com base em suas necessidades específicas.
Foto: Leila Fugii.
Alimente esta ideia
Conhecer, ensinar, aprender e cozinhar são alguns dos pilares de programa que completa 25 anos de ações em combate à fome
Em 1994, o Sesc São Paulo dá início ao programa, na época denominado Mesa São Paulo, de combate à fome e ao desperdício de alimentos. Instalado primeiramente no Sesc Carmo, expandiu-se para outras unidades da cidade até conquistar engajamento nacional. Foi em 2003 que passou a atuar em 26 estados e no Distrito Federal, quando foi rebatizado como Mesa Brasil Sesc. “Funcionamos como um elo entre empresas parceiras e instituições sociais em situação de vulnerabilidade social, doando alimentos próprios para o consumo, com o objetivo de complementar as refeições servidas nas entidades cadastradas”, explica a nutricionista Karen Leal da Silva, coordenadora do Centro de Captação e armazenagem Mesa Brasil Sesc São Paulo.
Um trabalho que tem em vista o fomento da economia social. Conceito discutido principalmente nas últimas décadas, dada uma maior atuação de empresas e instituições em ações sem fins lucrativos e que visam à inclusão e ao desenvolvimento da sociedade. “O Mesa Brasil tem o reconhecimento da Global Foodbanking Network (GFN), organização voltada para a criação e fortalecimento de bancos de alimento em todo o mundo.
E hoje é considerado o maior programa social com foco em alimentação na América Latina”, acrescenta.
Neste ano, o Mesa Brasil Sesc São Paulo completa 25 anos com a implantação da 18ª unidade. Desde janeiro, o Sesc Ipiranga começou a atender 16 bairros da capital, entre eles, Campo Belo, Cambuci, Parque Bristol e Parque São Lucas. Para isso, assim como em outras unidades, foi feito um mapeamento da região, que identificou potenciais empresas doadoras e instituições sociais. No caso do Ipiranga, já são 13 doadores e 32 instituições que já eram atendidas por outras unidades da capital, mas que passaram a contar com uma melhor logística e frequência de coletas e entregas.
4,9 milhões de kg de alimentos arrecadados
849 empresas doadoras
1.022 instituições atendidas
181.853 pessoas beneficiadas